sexta-feira, 10 de março de 2017

#31 - O PRATO DA MENINA, Maria Alberta Menéres

A menina tinha um prato
e dentro do prato um pato
de penas cinzentas e lisas
e no fundo desse prato
havia um prato pintado
e dentro do prato um pato
com uma menina ao lado.
E essa menina de tinta
tinha um prato mais pequeno
e dentro do prato um pato
de penas cinzentas lisas
e no fundo desse prato
estava outra menina ao lado
de um outro pato de penas
cada vez mais pequeninas.
Se a menina não comia
não via o fundo do prato
que tinha lá dentro um pato
de penas cinzentas lisas,
nem via a outra menina
que era bem mais pequenina
e tinha na frente um pato
um pato muito bonito
de penas cinzentas lisas
tão pequenas tão pequenas
que até parecia impossível
como a menina ainda via
e imaginava o desenho
até ao próprio infinito.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

#30 - A CIGARRA E A FORMIGA, La Fontaine / Bocage

Tendo a Cigarra em cantigas
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa Estação.

Não lhe restando migalha,
Que trincasse a Tagarela
Foi valer-se da Formiga,
Que morava perto dela.

Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se,
Té voltar o aceso Estio.

-- "Amiga, (diz a Cigarra)
Prometo à fé d'animal
Pagar-vos antes de Agosto
Os juros e o principal."

A Formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso ajunta
-- "No Verão em que lidavas?"
À pedinte ela pergunta.

Responde a outra: "Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora."
-- "Oh bravo! (Torna a Formiga)
Cantavas? Pois dança agora."

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

#29 - POEMA, Fernando Pessoa

Havia um menino
que tinha um chapéu
p'ra pôr na cabeça
por causa do Sol:
em vez de um gatinho
tinha um caracol
tinha um caracol
dentro do chapéu.
Fazia-lhe cócegas
no alto da cabeça,
por isso ele andava
depressa, depressa,
p'ra ver se chegava
a casa e tirava o chapéu,
saindo
de lá e caindo
o tal caracol.
Mas era, afinal,
impossível tal,
nem fazia mal
nem vê-lo, nem tê-lo
porque o caracol
era de cabelo!

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

#28 - NO COMBOIO DESCENDENTE, Fernando Pessoa

No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descedente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão...

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

#27 - O INVERNO, Eugénio de Andrade

Velho, velho, velho.
Chegou o Inverno.

Vem de sobretudo,
vem de cachecol,
o chão onde passa
parece um lençol.

Esqueceu as luvas
perto do fogão:
quando as procurou,
roubara-as um cão.

Com medo do frio,
encosta-se a nós:
dai-lhe café quente
senão perde a voz.

Velho, velho, velho.
Chegou o Inverno.